Em homenagem a Maria de Lourdes Modesto, desaparecida a 19 de julho de 2022, um dos nomes grandes da gastronomia de Portugal e com uma imensurável obra onde se destaca o livro Cozinha Tradicional Portugal (1982), partilhamos um texto da autoria de Virgílio Nogueiro Gomes, importante gastrónomo português, escrito para a INTER magazine em 2021 a propósito de uma reportagem sobre o Alentejo, região onde a “diva” da gastronomia portuguesa nasceu a 1 de junho de 1930. O seu legado ficará para sempre.
Nunca me pareceu tão difícil fazer um texto. Habitualmente a dificuldade vem de ter pouca informação; neste caso a informação privilegiada é muita, e o difícil será selecionar.
Maria de Lourdes Modesto afirmou-se sempre como alentejana. E evidencia aquilo com que o Alentejo a marcou. Sublime é a forma como descreve a alimentação alentejana pelos seus “cheiros”. Através dos cheiros, disserta sobre a aparente simplicidade da cozinha alentejana que, afirma, é delicada e que exige o saber fazer.
Foi pioneira a apresentar um programa de culinária na televisão em Portugal, iniciado em 1958. Como se pode verificar através do livro As Receitas da TV, 1967, e recentemente reeditado, o receituário não era apenas português, mas também de países de proximidade, como da França que continuava a ditar modas na cozinha. Para evidenciar a importância da cozinha portuguesa lançou, através do seu programa televisivo, um concurso de receitas das cozinhas regionais, uma região por mês, cujas receitas seriam classificadas e depois publicadas em livro. É deste concurso que surgem o Folar de Valpaços ou o Cabrito Estonado de Oleiros, como emblemas de excelência da cozinha portuguesa, e que revelam a ancestralidade de algumas tradições.
Surge depois a ideia de recolha de receitas para criar um inventário da nossa cozinha e que foi divulgado no livro Cozinha Tradicional Portuguesa, com primeira edição em 1982 e que continua a ser reeditado. É uma obra de culinária que existe em quase todas as casas portuguesas. Ora, o que começou por ser um programa dirigido às donas de casa, naquele tempo o hábito de comer fora de casa não tinha a dimensão que hoje conhecemos, transformou-se na obra fundamental para os cozinheiros profissionais que atuavam nos restaurantes. É um gesto natural a procura de “comida de conforto”. Assim, os novos consumidores de restaurantes procuravam o mais próximo do que comiam em casa. Este movimento é, para mim, a maior consequência benéfica da obra de Maria de Lourdes Modesto. É pelos restaurantes que confecionam as suas receitas que ficará para a história.
Coordenou a edição da Grande Enciclopédia da Cozinha, em dois volumes, 1960, e publicou os livros Doze Meses de Cozinha, 1975. Em 1995 surgiu Receitas Escolhidas. Publicou ainda os livros Cozinhar com Vegetais, 2005, Queijos Portugueses, com Manuela Barbosa, 2007, e Cogumelos do Campo até à Mesa, com João Luís Baptista-Ferreira, 2010.
Enganam-se aqueles que achavam que a sua carreira terminaria aí. A sua ânsia permanente de saber mais, e estar sempre atualizada, leva-a a fazer crónicas na revista Preguiça e, depois, ainda no jornal Diário de Notícias na sua maioria já publicadas em livros designadamente em palavra puxa palavra, 2005, Sabores com Histórias, 2014, e, mais recentemente, Coisas Que Eu Sei, 2021. Aliás, esta faceta de acompanhamento da modernidade, é pouco associada à sua imagem ainda levados pelo epíteto de “Diva” que Miguel Esteves Cardoso lhe atribuiu.
Defensora da mais genuína cozinha portuguesa, sempre defendeu a sua evolução com as cautelas de não descaracterizar a receita. Se isso acontece, então, na sua opinião, dever-se-ia alterar a denominação da receita. Continua atenta às novas técnicas na cozinha, sempre receosa de algumas modas que pouco contribuem para a estética do gosto ou do prato.
Um dos melhores exemplos a que tive oportunidade de assistir foi a Maria de Lourdes Modesto ser recebida em apoteose, e sala cheia, no Congresso dos Cozinheiros 2018. A maioria eram jovens cozinheiros que continuam a abordá-la para obter a sua assinatura nos livros.
Outra faceta que gostaria de realçar é o seu sentido de humor e a argúcia nas discussões sobre culinária e especialmente enquanto esta é responsável pelos melhores atos conviviais que são as refeições. Sempre atenta aos avanços desta atividade que impõe pelo seu conhecimento e cultura sempre presentes. Ainda bem que temos uma Maria de Lourdes Modesto.
NOTA: Este artigo foi publicado originalmente na revista INTER Magazine e é da autoria de Virgílio Nogueiro Gomes.
Foto: Humberto Mouco