No Arkhe, em Lisboa, João Ricardo Alves e Alejandro Chavarro plantam a semente da revolução vegetal sem fundamentalismos. E assumem o desígnio de “quebrar o ciclo” de mão-de-obra barata, desqualificada e, muitas vezes, maltratada do setor. Porque nenhum restaurante pode ser sustentável sem cuidar das suas pessoas.
Arkhe. Para os filósofos gregos pré-socráticos era o princípio presente em tudo, a substância inicial de onde tudo deriva. A origem das coisas. No início do Arkhe, o restaurante que, no raiar de 2019, se instalou no Boqueirão do Duro, na zona de Santos, em Lisboa, está o luso-brasileiro João Ricardo Alves, nascido em São Paulo em 1984, filho de um transmontano que emigrou com os pais e os irmãos para o Brasil, “só com a roupa que levavam no corpo”.
João cresceu em Florianópolis, rodeado de água… e de pão. “O meu avô trabalhava numa padaria, e o meu pai e o meu tio iam de carroça entregar pão e leite. A primeira memória que tenho é dentro de uma padaria que o meu pai tinha, com fornos a lenha enormes. Era lá que brincava aos fins de semana.” Quando chegou a hora de escolher um rumo para a vida, foi estudar administração e hotelaria, porque queria “trabalhar numa rede de hotéis e viajar pelo mundo”, mas foi a cozinha que o conquistou. “Percebi depressa que os números não eram o meu forte. O que queria mesmo era ser um operacional de cozinha”.
No final do curso, o objetivo levou-o até uma escola suíça para aprofundar os conhecimentos sobre a cozinha francesa. O plano era ficar seis meses, mas já não regressou ao Brasil, a não ser para passar férias. “Apaixonei-me pela Europa e pela sua cultura, e também pela oportunidade de viver em diferentes países”. Andou por França, Inglaterra e Itália, incluindo a cozinha do Joia, de Milão, o primeiro restaurante vegetariano italiano a ganhar uma estrela Michelin.
Foi durante a passagem por um restaurante de campo na região de Haute Loire, em França, especializado em carnes e caça, que percebeu que queria afastar-se do trabalho com proteína animal. “Os animais chegavam-nos inteiros e era preciso limpá-los e desmanchá-los. Passávamos todo o dia a manipular animais mortos, por vezes ainda quentes. Fiz isso durante seis meses e foi algo que me incomodou muito. Não queria estar numa cozinha com tanta manipulação de animais, com todo aquele sangue e aquele cheiro. Senti que o universo vegetal tinha um mundo enorme para explorar e havia muito pouca gente a fazê-lo”.
A mudança para Portugal seguiu-se a uma outra paragem, que acabou por se revelar decisiva para esse passo: exausto depois de anos a trabalhar em restaurantes europeus, decidiu tirar um ano sabático, viajando primeiro para a Índia e depois para Bali para se dedicar a outra das suas paixões, o ashtanga yoga. Na ilha indonésia, acabou a trabalhar como chefe de cozinha no Fivelements Retreat, “um hotel que foi o primeiro em Bali a fazer um fine dining 100% vegetal”, onde conheceu vários clientes portugueses que o desafiavam a abrir um restaurante vegetariano mais sofisticado em Lisboa. “Sendo filho de portugueses, receava que fosse um tipo de cozinha que não seria bem recebida, mas diziam-me que Lisboa estava muito aberta, havia uma mudança que se sentia, havia espaço para este tipo de cozinha. Já existiam muitos restaurantes, mas nada do nível que eu queria fazer.” Decidiu tentar.
UM COMEÇO POUCO AUSPICIOSO
João aterrou em Lisboa em novembro de 2017 com um propósito bem definido: criar um restaurante assente numa cozinha moderna e inovadora à base de vegetais. O objetivo, porém, esbarrou na realidade de uma cidade que se tornara um destino turístico procurado por milhões de viajantes: nos primeiros meses, viu mais de 50 espaços para instalar o seu negócio, “todos com preços altíssimos”. Com um filho a caminho, aceitou então o convite de Cláudia Villax para fazer jantares plant based n’A Sociedade, uma oficina criativa no Príncipe Real, que serviriam de balão de ensaio para o Arkhe. “Acabou por ser uma forma de testar o mercado. Os clientes eram quase todos portugueses e permitiu-me ver que estavam muito abertos a este tipo de cozinha. Saiam felizes do jantar e já marcavam para a oportunidade seguinte. Ficámos com uma clientela regular”.
Em fevereiro de 2019, investiu “tudo o que tinha” para abrir as portas do Arkhe onde antes estivera o restaurante biológico Pachamama, no Biqueirão do Duro, “numa rua que não é bem uma rua”, num espaço que “não foi feito para um restaurante” e com uma das cozinhas “mais difíceis” onde já trabalhou. “Esta zona há quatro anos era um horror, muito mal frequentada, mas não tinha opção. Financeiramente era o que podia pagar. Operámos um verdadeiro milagre para conseguir trabalhar aqui”, garante o chefe.
O arranque do projeto foi tudo menos auspicioso: ao fim de um ano de atividade, o negócio acumulava prejuízos e dores de cabeça. Mas, se o cenário não era promissor, pior ficou quando, em março de 2020, a pandemia de Covid-19 obrigou a que as portas se fechassem. Numa atitude honrosa mas que reconhece ter sido de “grande ingenuidade”, João pagou tudo o que devia a fornecedores, ficando com apenas 800 euros na conta bancária. “Durante duas semanas fiquei num estado depressivo, achei que era o fim.”
E podia muito bem ter sido não fosse a entrada em cena de outra personagem fundamental nesta história: nascido em Bogotá, Colômbia, Alejandro Chavarro cresceu com o sonho de ser cozinheiro, mas foi como sommelier de alguns dos mais reputados restaurantes franceses que ganhou fama. Estava no auge da sua carreira quando, durante um retiro de meditação e yoga na Índia, se apaixonou por uma portuguesa (com quem hoje está casado). Foi já em Portugal, onde se fixou em julho de 2018, tendo criado uma importadora e distribuidora de vinhos de pequenos produtores, sobretudo franceses, que foi arrebatado pelo talento de João Ricardo Alves e da cozinha do Arkhe. “Lembro-me da primeira vez que ele me serviu uma carbonara de raiz de aipo. Dei duas garfadas e pensei: ‘este gajo é monstruoso. O que é que faz aqui enfiado neste buraco?’ Era brutal, nunca tinha provado uma coisa assim na vida”.
De cliente habitual do Arkhe a colaborar com João em pequenas consultorias e alguns jantares vínicos foi um pequeno passo. Até que, em plena pandemia, surgiu o convite inesperado: estaria interessado em tornar-se sócio do projeto?
Regressar ao lado operacional de um restaurante não era algo que estivesse nos planos de Alejandro, que queria dedicar mais tempo à família. Além disso, bastaria olhar as contas da empresa para perceber os riscos daquela aposta. “Qualquer pessoa que visse o balancete ia achar que o melhor era fechar portas. Aquilo era totalmente suicida. Madre mia, no que é que eu me ia meter?”, recorda. João concorda: “Não fazia sentido nenhum, ainda mais para uma pessoa como o Alejandro, uma das mais talentosas com quem já trabalhei. A nível de sala e de vinhos não conheci em Portugal ninguém com o nível dele. Mas tinha exemplos na minha vida em que as pessoas chegaram com a roupa que tinham no corpo e construíram coisas enormes só trabalho. É nestes momentos extremos, em que estamos no limite, que as coisas acontecem.” Convencido pelo desafio, Alejandro aceitou juntar-se a esta aventura.
A SUSTENTABILIDADE COMEÇA NAS PESSOAS
Reabriram portas após o confinamento com sete pessoas na equipa: quatro na cozinha, duas no serviço de sala e um copeiro. No primeiro dia, um dos cozinheiros queimou-se gravemente e já não voltou à equipa. No espaço de poucos dias, a saída foi acompanhada por outras duas: a da namorada deste, que trabalhava na sala do Arkhe, e a de outro elemento cozinheiro. Com apenas quatro pessoas na equipa, Alejandro viu-se numa situação inédita: tanto fazia serviço de sala como, no momento seguinte, estava enfiado na cozinha, ajudando João a cozinhar, empratar e dar o passe. “Foi uma das situações mais complexas que vivi na vida”, admite João. “Mas essas dificuldades trouxeram-nos muita força. Uniram-nos muito”.
Os tempos são hoje outros, felizmente mais risonhos. No Arkhe trabalham agora 14 pessoas, sinal da evolução que o projeto tem tido, sendo hoje, a par do Encanto, de José Avillez, um dos melhores restaurantes de Lisboa onde os vegetais assumem o protagonismo.
Aos elogios da crítica e dos clientes, somam-se as distinções, como o Bib Gourmand, do Guia Michelin, renovado este ano. Uma estrela no prestigiado guia está no horizonte, mas não a qualquer custo. “Se é só para pegar uma estrela, fechar no negativo e ter uma equipa infeliz, não é isso que queremos. O restaurante, além de ser saudável financeiramente, tem de cuidar das suas pessoas”, defende o chef. Com isso em mente, o espaço fecha aos fins de semana e ao almoço de segunda-feira, e toda a equipa tem sete semanas de férias pagas por ano. “Não fizemos isto para ganhar prémios e fama, queremos é uma casa que perdure no tempo. É uma corrida de longa duração e, para isso, precisamos que a equipa esteja bem. As pessoas que conseguimos atrair nestes dois anos são muito especiais e queremos cuidar bem delas.”
João e Alejandro assumem o desígnio de “quebrar o ciclo” de mão-de-obra barata, desqualificada e muitas vezes mal-tratada do setor. “A restauração entrou um pouco em colapso porque se esqueceu das suas pessoas. Errou-se muito e agora está-se a pagar o preço. A sustentabilidade está também aí, começa antes da mesa. Estou cansado dessa conversa da hortinha, do produtinho, é só bla, bla, bla. E as pessoas? O dia-a-dia delas? A alimentação delas? O pagamento é justo? Porque é que ninguém quer trabalhar na sala? Porque paga-se muito mal. Estamos a tentar encontrar soluções para oferecer melhor”, revela João. “As pessoas nunca vão ter empenho pessoal se o ambiente de trabalho for horrível”, acrescenta Alejandro. “O meu sonho era ser cozinheiro, mas desisti por causa do contexto. Não gostava, era violento, insensível, totalmente focado numa obsessão sem lógica. Era só golpes, sem receber nada em troca.”
NO INÍCIO, ERA O VINHO
A cumplicidade entre João e Alejandro é o espelho de outra simbiose que está na origem do processo criativo que define cada menu de degustação do Arkhe. “O vinho é o começo de tudo, foi algo que o Alejandro introduziu. Provamos o vinho, que é algo que já é definido, e partir daí vemos que produtos vamos ter disponíveis na estação e vamos explorando, também com base nas memórias que temos armazenadas na cabeça e nos inputs que as pessoas da equipa trazem”, explica o chef. É como se as receitas fossem pensadas como um vinho, acrescenta Alejandro. “A dimensão que se ganha através do vinho é imensa. É algo que alonga o prato e permite abrir espectros de sabor enormes, sobretudo numa cozinha que tem poucas memórias. Mostrámos que era possível ter uma carta de vinhos maravilhosa, diversa e com consciência do que está dentro do prato. Para mim isso é um avanço enorme, porque muitos restaurantes vegetarianos tinham esse estigma de que só serviam fermentados, limonadas, infusões, nada qualitativo…”
Apesar de apostar na cozinha vegetariana, com cerca de “80% dos pratos veganos”, a dupla prefere fintar rótulos e apresenta o Arkhe como um restaurante que serve um menu “de base vegetal”. “Somos um restaurante, ponto”, atira Alejandro, tentando arrumar a discussão. “Quando disse que ia abrir um vegetariano em Portugal, as pessoas davam-me dois, três meses, diziam que ia falir”, recorda João. “Na verdade, a nossa cozinha é para todos, não queremos ter só vegetarianos e veganos. Queremos ter pessoas que vêm aqui passar um bom momento, tomar um bom vinho, provar boa comida e levar uma boa memória. Para mim, um restaurante é isso.”
O espaço do Arkhe, no Boqueirão Duro, tornou-se pequeno para a sua missão.
O próximo passo será a mudança para um local maior e mais confortável para a equipa e para os clientes, e onde a comida e o serviço se possam expressar melhor. Um passo cada vez mais necessário, mas que será dado “sem entrar em loucuras”, porque, apesar do restaurante ser hoje um negócio saudável, “o mundo pode mudar amanhã”, afirma Alejandro. “Temos feito aqui verdadeiros milagres. Demorámos três anos para comprar um forno, quatro para termos um sofá. Fomos melhorando aos poucos, na medida do possível, com humildade, sem perder a cabeça. Estamos no momento em que queremos algo melhor para nós e onde a nossa cozinha se possa expressar melhor. Queremos continuar a cultivar uma personalidade própria.”
NOTA: Este artigo foi publicado originalmente na revista INTER Magazine e é da autoria de Nélson Marques.
Foto: Humberto Mouco